“Hoje, em Angola, ser militante de um partido político vale mais do que ser cidadão”

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Jó Soares | Jornal OKWANZA

O que lhe apraz dizer ante o quadro criado pela Covid-19 no mundo e nosso País em particular?

Trata-se dum momento inesperado que mostrou a vulnerabilidades dos sistemas que regem o mundo, e, por outro lado, deu azo a prática de algumas virtudes antes sonegadas. Seja como for é um momento de grande agitação, incertezas e ansiedade. O que importa é a vontade enérgica que os governos estão a mostrar para vencer o mal. E o nosso País não fica atrás, pois tudo se está a fazer para que os danos sejam menores, apesar da informalidade da nossa vida.

“Prática de algumas virtudes antes sonegadas”? 

Quero simplesmente dizer que com a chegada da pandemia, cresceu o sentido de família, solidariedade, diálogo, atenção aos filhos, preocupação com a higiene e outras práticas boas que antes não eram tidas em conta. E a nível do Governo nota-se maior empenho na busca de soluções e respostas para a satisfação das necessidades dos cidadãos.

Como caracteriza o desempenho do Governo no que respeita às estratégias levadas a cabo por si no País devido à Covid-19?

É o desempenho possível, tendo em conta as dificuldades profundas que está a experimentar. Tomou medidas oportunas e corajosas que estão a dar respostas plausíveis. Contudo, houve uma tentativa de se politizar a doença, mas que felizmente foi imediatamente corrigida. Penso que devemos encorajar o esforço que está a ser feito para se salvar vidas.

É correcto tirar-se proveito da situação social e económica dos mais desfavorecidos no âmbito da Covid-19 no País?

Como disse, houve esta tentativa que é, a todos títulos, reprovável. É humilhante fazer da pobreza e misérias alheias trunfos para ganhos políticos ou para exibir falsa generosidade. Simplesmente não é humano nem ético e muito menos justo. Vamos respeitar a dignidade dos mais desfavorecidos, vamos trabalhar para o fomento da Justiça Social e da solidariedade sem hipocrisia e instrumentalização.

Como deve ser entendida esta falsa generosidade, que se confunde com uma pré-campanha eleitoral?

Olha que os políticos não deixam escapar as oportunidades que aparecem. Infelizmente eles procuram tirar dividendos em tudo, mesmo que isto signifique atropelar os princípios mais elementares da ética e do decoro. Por isso, não me estranha que assim seja.

Que Angola teremos pós-Covid – 19?

Penso que teremos uma Angola mais humilde, mais aberta e sensível ao bem dos cidadãos, uma Angola apostada na redução das clamorosas assimetrias regionais e na exaltação do patriotismo, da meritocracia e da inclusão. Gostaria que Angola fosse mais de cidadãos e não de militantes. É o meu grande sonho para Angola pós-Covid 19.

E se tal não acontecer?

Continuaremos a trabalhar na melhoria da mentalidade cultural e política, até que tal seja possível. Não podemos continuar a ser reféns de políticas que impulsionam a corrupção, o descompromisso com o cidadão, o egoísmo e a indiferença. Urge uma revolução cultural profunda para ganharmos novos ideais, nova mentalidade e novas atitudes. Tudo depende de nós mesmos, despindo-nos da arrogância, da cegueira intelectual e da prepotência.

Disse algo a que se deve fazer luz e não deixar ficar nas entrelinhas. Angola é um País mais de militantes e menos de cidadãos. Como se traduz isso no nosso quotidiano?

Sim. Hoje na consciência de muitos, até de certos governantes, ser militante vale mais do que ser cidadão, o partido vale mais do que a Nação! É uma herança pesada e empobrecedora que não estimula o desenvolvimento humano, social, político, económico e cultural. Penso que o dia que invertermos esta mentalidade aí começará o renascimento de Angola.

Qual tem sido papel da Igreja Católica, no âmbito da sua Doutrina Social, para se inverter esta mentalidade e ajudar a alavancar o renascimento de angola?

O nosso contributo tem sido dado de diversas maneiras: através do anúncio do Evangelho do amor, do perdão e da reconciliação; através das instituições de ensino e de caridade, enfim através dos pronunciamentos pontuais e temáticos contidos nas Mensagens e Notas Pastorais que podem ser encontrados nos livros já publicados. Continuaremos a ser sentinelas atentas e a voz dos sem voz. Está é a nossa missão, e é o que temos procurado fazer, seguindo os passos de Jesus Cristo.

A Covid-19 alterou o dia-a-dia da Igreja também?

Alterou e muito. As Igrejas continuam fechadas, a catequese paralisada, a celebração dos sacramentos adiada e os seminários paralisados…Tudo isto está a provocar muitos embaraços na vida dos fiéis. Temos fé que nos próximos tempos já teremos alguma permissão para as celebrações eucarísticas e outros serviços, claro dentro da disciplina que se impõe.

Quem promove, no País as políticas que impulsionam a corrupção e o descomprimisse com o cidadão?

É preciso termos consciência histórica para podermos fazer leituras e interpretações seguras dos fenômenos que acontecem hoje. Nós somos governados por cidadãos que deveriam trabalhar para o bem comum e para a alegria de todos… Mas infelizmente muitos dos nossos governantes furtaram-se da sua verdadeira missão. Não serviram o Estado, mas serviram-se dele para enriquecer ilicitamente… E estes criaram uma cultura para sustentarem os seus ideais. Daí o amiguismo, o compadrio, a corrupção, a bajulação, o riquismo sem trabalho nem ética e o descompromisso total pelo bem do irmão.

O senhor também esteve na recente audiência que o Presidente João Lourenço concedeu aos bispos da CEAST, no Palácio da Cidade Alta?

 Sim estive!

O que é que foi objecto de abordagem neste encontro?

O senhor presidente desde que assumiu as rédeas do País nunca esteve connosco. Por isso, fomos lá para saudá-lo e encorajá-lo na missão árdua da reforma do Estado que está a empreender e garantimos-lhe o nosso apoio neste trabalho de purificação do País dos males que o enfermam. O Estado e a Igreja trabalham para o bem material e espiritual dos cidadãos, por isso toda colaboração é necessária e bem-vinda.

Estou lembrado que pediram uma informação sobre o repatriamento de capitais ora feitos e o PR prometeu divulgar tal informação. Por que razão não se fez ainda?

De facto, nós pedimos esta informação e o senhor Presidente prometeu dar a resposta ao País.

 Mas ela ainda não foi dada…

Vamos esperar.

O combate à corrupção é um facto ou é “música” para os ouvidos do povo e matéria para as chancelarias acreditadas no nosso País preencherem os seus relatórios?

É uma intenção boa e necessária para o País que queremos. Já é muito bom que alguém tenha tido a coragem de assumir os erros danosos e a vontade de corrigi-los. Noutros tempos nem sequer se podia falar desses erros. A luta contra a corrupção ainda vai demorar nos seus efeitos, porque este mal embrenhou-se profundamente na mente de muitos cidadãos: passou a ser parte do nosso ser e agir, infelizmente! Por isso, vai levar muito tempo para removê-lo do nosso quotidiano social. Não sejamos pessimistas nem ingênuos: vamos todos trabalhar, cada um segundo o grau da sua responsabilidade para a inversão desta marcha que precipitou o País na miséria, inércia e paralisia social. 

O PR disse que a luta contra a corrupção é de toda a sociedade, mas a informação sobre o desenvolvimento da mesma é apenas usufruto de uns poucos. Por quê?

Este é o grande pecado do nosso governo: falta de comunicação transparente. Ninguém deve agir às cegas. A comunicação verdadeira deve fluir mais entre os cidadãos para se evitar a especulação, o boato e a desinformação. Para se vencer este monstro, que é a corrupção, todos somos necessários.

 O Presidente João Lourenço vai acabar com a corrupção ou a corrupção vai acabar com ele?

A corrupção não se acaba com a matemática, porque ela é uma mentalidade ou se quisermos é uma cultura. Requer muita determinação, ousadia, instituições fortes, leis firmes e sobretudo educação permanente. Há que formar consciências sãs com um forte sentindo do outro e do bem que lhe é devido. Isto não tem prazo: é um ir fazendo pacientemente, um ir educando corajosamente até se reverter e melhorar a mentalidade ou a cultura. O bem é que já começamos a luta. Vamos a ela.

As nossas instituições de Justiça são suficientemente fortes e credíveis para ajudarem a combater a corrupção?

Ainda não. Elas mesmas ainda estão a passar num processo de despolitização que ainda vai levar algum tempo.  Estiveram por muito tempo manietadas pelos políticos. Oxalá que se libertem definitivamente desta influência nociva e promovam só e só a Justiça.

 Acha que as instituições de Justiça do isso País já estão despolitizadas?

Estão a passar por um processo de despolitização. Ainda estão a caminho.

O que acha do facto de muitos políticos suspeitos da prática de crimes “esconderem-se” no Parlamento devido às imunidades que estes órgãos lhes conferem? Isto não belisca a imagem deste órgão de soberania?

Acho que a seu tempo a Justiça se fará sentir. Pois quando a Justiça se fizer sentir as imunidades cairão. Agora não creio que estejam a fazer da Assembleia Nacional um esconderijo. Penso simplesmente que ainda não chegou o momento deles.

Como avalia a popularidade do PR?

É razoável. Infelizmente a conjuntura econômica nacional não lhe tem sido favorável para implementar as suas políticas. Contudo, tem sabido ser corajoso e determinado.

 Com que olhos vê a oposição política angolana?

É uma oposição que é filha da mediocridade da nossa política. Ela faz o que as circunstâncias do momento determinam. Exceptuando um ou outro partido, no geral falta algum protagonismo fora das campanhas eleitorais. Estão muito concentrados sobre si mesmo e a gerir conflitos internos. Devem se afirmar mais e pensar mais no País e não neles mesmos.

Que avaliação faz da Sociedade Civil actualmente?

É uma sociedade civil mais activa, livre das amarras partidárias, e virada para o bem da sociedade no seu todo. Já há maior consciência de que o pensar a sociedade não é monopólio exclusivo dos políticos. Todos somos participes e corresponsáveis na construção duma sociedade com todos e para todos.

O senhor andava preocupado com as seitas religiosas e os médicos tradicionais. Esta preocupação mantém-se?

Mantém-se, pois é uma praga que está a travar o desenvolvimento e a aprofundar ainda mais as trevas da ignorância de muitos concidadãos. Não estou contra os médicos tradicionais (ervanários), mas sim contra os adivinhos que espalham terror nas comunidades com acusações de feiticeiros a pessoas de bem e de sucesso. Nestas classes estão alguns pastores que transformaram os lugares de cultos em lugares de práticas inimagináveis de perversão social e moral. Enquanto isto perdurar algumas regiões do nosso País continuarão à leste do desenvolvimento autentico.

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