A propósito do tema da nossa última conversa, alguém me perguntava acerca do carácter genuíno e da pertinência historiográfica da questão – “o que é um filósofo africano?”, – querendo saber se constitui verdadeiramente um problema filosófico.
Após a leitura do texto, o meu interlocutor interrogava-se nos seguintes termos. Deve hoje merecer a nossa atenção ou deve ser esquecido, como admitia o professor nigeriano Moses Akin Makinde?
Quanto a mim, a questão subjacente continua a ter dignidade enquanto problema, em toda a sua dimensão.
Filosoficamente, conserva toda a importância. Trata-se de um tópico que, em diferentes perspectivas, tem sido desenvolvido por alguns filósofos e escritores Africanos. É o caso de Godwin Sogolo (na imagem) que o faz de uma forma singular, ao concentrar a sua atenção nos factores que sustentam os dilemas do filósofo africano, como veremos mais adiante.
Mas foi o falecido filósofo nigeriano, Peter O. Bodunrin (1936-1997), que, em 1981, publicou um dos mais controversos artigos de cariz metafilosófico, no contexto deste debate.
Metafilosofia africana
É certo que a versão histórica do tópico aflorado na semana passada, para alguns autores, representa o tipo de problemas que já não se discute, do mesmo modo que já não parece justificar-se a discussão sobre a existência da Filosofia Africana. Como sustentava Odera Oruka, os debates que ocorreram antes e durante a década de 90 do século XX evidenciam isso.
No entanto, a resposta à questão representa um imperativo. A tarefa deve ser levada a cabo por qualquer Africano que encontrar aí uma justificação para pensar em profundidade a prática filosófica sistemática, no nosso continente.
A esta actividade reflexiva chama-se “metafilosofia”, isto é, o tratamento sistemático de métodos e conteúdos filosóficos ou pensar filosófico sobre a própria filosofia.
Do ponto de vista da autonomia disciplinar universitária, a “metafilosofia” é um domínio negligenciado, para não dizer ignorado completamente.
Mas, isso não confirma a inexistência de produção reflexiva sobre a filosofia da filosofia africana. Aliás, qualquer catálogo ou bibliografia especializada – é o caso da bibliografia elaborada sob a coordenação do belga A. J. Smet – permite identificar títulos de livros, artigos e colectâneas que fazem prova de abordagens metafilosóficas africanas.
A partir daí é possível elaborar uma elucidativa tipologia de títulos. Por exemplo: “Existe a Filosofia Africana?”, “O que é a Filosofia Africana?”, “O que é ou quem é filósofo africano?”, “Qual a orientação da Filosofia Africana?”, “Em que reside a originalidade da Filosofia Africana?”, “Em busca da Filosofia Africana”.
Quanto aos autores que desenvolvem uma metafilosofia explícita em torno desse tipo de questões, menciono alguns deles: Godwin Sogolo, [In Search of African Philosophy]; Kwasi Wiredu, [On Defining African Philosophy]; Onyewuenyi, I., [Is There an African Philosophy?]; Peter O.Bodunrin [The Question of African Philosophy].
Curiosamente, todos eles filiam-se na tradição analítica britânica ou anglófona, devido à influência britânica. Por isso, constata-se que geralmente o carácter descritivo ou normativo das reflexões metafilosóficas produzidas nos países africanos de língua inglesa não encontra equivalente nos países africanos de língua francesa ou de língua portuguesa, onde predomina a influência da chamada tradição continental ou especulativa europeia.
Texto seminal de Peter Bodunrin
O falecido filósofo nigeriano, Peter O. Bodunrin, formou-se na Universidade de Ibadan, tendo obtido o seu doutoramento na Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos da América, onde exerceu a docência na Universidade Estadual de Nova York.
Foi professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Ibadan. Ele é autor de um dos mais citados e controversos artigos de cariz metafilosófico em África. Trata-se de um texto publicado em 1981, na revista “Philosophy” da Universidade de Cambridge: “The Question of African Philosophy”, [A Questão da Filosofia Africana]. Integra a lista de “filósofos profissionais” que Odera Oruka elaborou, quando em 1978, numa conferência realizada na Universidade do Ghana, procedia à classificação das correntes do pensamento filosófico africano contemporâneo. Oruka identificava quatro correntes: 1) Etnofilosofia; 2) Ideologia-nacionalista; 3) Filosofia profissional; 4) Filosofia da sagacidade. Devido à apologia que fazem da quase obsessiva abertura ao universal, os “filósofos profissionais” são também pelos seus críticos designados como “universalistas”.
Nesse texto seminal de Peter O. Bodunrin, é possível identificar três ideias principais. Em primeiro lugar, emerge a refutação da escritofilia ou crítica do preconceito grafocêntrico. Ele considera que a escrita não pode ser um pré-requisito para a prática da filosofia, embora se possa admitir que os avanços e progressos proporiconados pelo seu uso, sejam diferentes quando se tem a escrita como dispositivo.
Em segundo lugar, situa a tradição como contexto que suporta a prática filosófica individual em qualquer parte do globo. Assim, se existe uma tradição filosófica britânica, de igual modo existem diferentes tradição filosóficas em África. Peter O. Bodunrin procura sustentar a ideia que aponta para a necessidade do estudo correcto do “pensamento tradicional africano”, advertindo que nas diferentes comunidades africanas nem todos os indivíduos são filósofos. A reflexão filosófica exige treino e recurso ao método da crítica filosófica.
Em terceiro lugar, Peter O. Bodunrin chega à seguinte conclusão. Um filósofo africano não pode deliberadamente ignorar o estudo dos sistemas de crenças e tradições do seu povo porque os problemas filosóficos surgem de situações da vida real. Refere que as provas são abundantes, na medida em que a cultura e as crenças tradicionais ainda exercem uma grande influência no pensamento e nas acções dos Africanos de hoje.
Neste sentido, sublinha que a abordagem do filósofo Africano deve assentar na crítica. Tal não significa necessariamente avaliação negativa. Exige, pelo contrário, uma avaliação racional, imparcial e articulada, não importando se positiva ou negativa. Por outro lado, defende que um problema filosófico, deve ter uma relevância universal para a humanidade.
Pode dizer-se que as ideias de Peter O. Bodunrin e o modo como as desenvolve, em alguns tópicos e em determinado momento da história da filosofia contemporânea africana, aproxima-o de Kwasi Wiredu, Paulin Hountondji, Odera Oruka, Kwame Appiah e outros.
Posição de Godwin Sogolo
O professor e filósofo nigeriano Godwin Sogolo (1946) formado na Nigéria, pela Universidade Obafemi Awolowo, antiga Universidade de Ifé, e na Grã-Bretanha, pela Universidade do País de Gales, notabiliza-se pela sua intervenção neste debate metafilosófico. Por conseguinte, o que se segue é uma breve interpretação das propostas que ele formula nos sete capítulos do seu livro, “Foundations of Africa Philosophy” [Fundamentos da Filosofia Africana], editado em 1993 pela editora da Universidade de Ibadan.
Com essa obra, Godwin Sogolo articula um discurso que tem como substrato a experiência africana, num fecundo diálogo sobre diferentes temas, distribuídos por três grandes domínios, nomeadamente, Natureza, Deus e Homem. No entanto, o estrito respeito pelo tópico da nossa conversa, hoje interessa-nos apens o primeiro capítulo, “In Search of African Philosophy” [Em Busca da Filosofia Africana].
O impulso da reflexão desenvolvida por Godwin Sogolo inicia-se com a crítica ao modelo de filósofo profissional no contexto da África moderna, defendido por Bodunrin. Segue-se a descrição de um dos importantes dilemas do “filósofo Africano moderno” para cuja caracterização concorrem três factores: 1) prática filosófica em línguas estrangeiras e, consequentemente, a alienação pelo uso de esquemas conceptuais e categorias teóricas ocidentais; 2) a inscrição no campo profissional de filósofos baseada em afinidades decorrentes da prática filosófica; 3) exercício da profissão pautado por indicadores de relevância e utilidade quantificáveis.
Por essa razão, Godwin Sogolo entende que a resposta do inglês E. A. Ruch à pergunta – “Is There an African Philosophy?” –, está errada. Ruch afirma: “Não existem filósofos Africanos. Não há filosofia africana”. Essa resposta assenta na ideia segundo a qual as obras que representam a tradição filosófica africana, presumivelmente um corpo de pensamento comunitário formado por colecções, interpretações e disseminnação de visões africanas do mundo, não podem ser classificadas como filosofia.
Método e conteúdo
Godwin Sogolo refuta a resposta de E. A. Ruch e seus epígonos. A questão de saber quem pode ser qualificado como filósofo depende dos critérios com que se opera para avaliar uma obra de filosofia. Para o efeito aponta dois critérios: método e conteúdo.
No dizer de Sogolo o método crítico é transversal. Donde qualquer indivíduo revelará aptidão para a prática filosófica. Mas, o que distingue o filósofo do não-filósofo depende do grau em que se situa o pensamento reflexivo. Por essa razão, a obra filosófica deve ser avaliada pelo seu nível de análise crítica.
Em segundo lugar, o conteúdo da obra filosófica comporta basicamente os dilemas e problemas humanos cuja valorização depende das culturas em que eles se inscrevem e do modo como estas são interpretadas.
No debate metafilosófico africano, regista-se um outro pensamento relativamente consensual, quando se considera que a língua de trabalho constitui um dilema dos filósofos africanos. Este é igualmente o ponto de vista de Godwin Sogolo que nesta matéria reconhece a relevância da tradução e produção do texto bilingue. Trata-se, no fundo, de uma outra perspectiva do “dilema fundamental da filosofia contemporânea africana”, a que se referia Sophie B. Olwole.
A este propósito, o poeta Agostinho Neto, em Novembro de 1977, falando na Assembleia Geral da União dos Escritores Angolanos, enunciou um ponto de vista pertinente para o debate. Embora aplicado à literatura, não deixa de ter conexões com esse dilema da língua que, sendo do escritor, é também do filósofo. Ele afirmava o seguinte: “[…] neste momento já não é aceitável a ideia de fazer entrar na categoria de escritores apenas aqueles que manejam com perfeição a língua portuguesa.
A interpretação ou a descrição da vida têm de ser sim actos de artistas, mas a forma que assume não se subordina ao domínio mais ou menos perfeito da língua que hoje utilizamos. O conceito de escritor e de membro desta União deve assim ser activamente alargado”.
Portanto, o método, o conteúdo e as línguas são critérios determinantes cuja tematização filosófica pode contribuir para a disciplinarização da “metafilosofia” nas nossas instituições de ensino superior, deixando assim de ser um domínio negligenciado e ignorado
*Ensaísta e professor universitário
Fonte: JA