Fé, religião e luta de poder Do Brasil para o Mundo, IURD “atrai” milhões

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Conforme uma passagem bíblica deixada por Jesus Cristo, há mais de dois mil anos, é pelas obras que se manifesta a fé e se conhece, efectivamente, os verdadeiros adoradores.

Elias Tumba e Frederico Issuzo | ANGOP 

Na prática, facilmente se percebe a dimensão dessa velha profecia, de tão crítica que se mostra, nos últimos tempos, a “vida” espiritual e administrativa de várias instituições religiosas. 

É cada vez mais comum ouvir-se, nas igrejas, denúncias de violações à Lei e aos fundamentos teológicos, que dão azo a divisões e ao surgimento de novos movimentos religiosos.    

Ganância, injustiças e lutas de poder estão entre as denúncias que resumem quão “insípidos” se tornam alguns grupos religiosos, cuja matriz se fundamenta na teoria da prosperidade. 

Nos dias de hoje, há, inclusive, religiões acusadas de não medir a meios, nem respeitar os fundamentos do perdão e amor ao próximo, quando em causa estiver a defesa do lucro. 

É, exactamente, isso que parece animar a agenda de alguns líderes religiosos estrangeiros cujas igrejas têm forte implantação em Angola, que vivem sob o prisma da desconfiança constante. 

São, essencialmente, instituições que operam como “verdadeiras máquinas financeiras”, bem relacionadas e com milhares de fiéis, na sua maioria pobres, em busca de prosperidade.  

Algumas delas estão em Angola há várias décadas, com “luxuosos” templos construídos com dízimos e ofertas dos fiéis, mas com um quase nulo investimento em infra-estruturas sociais. 

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é uma das denominações religiosas estrangeiras que sofre, actualmente, esse clima de suspeição e de aparente divisão, com dois grupos a brigarem pela liderança da instituição, fundada no Brasil, em 09 de Julho de 1977 

A IURD atravessa uma das mais complexas etapas da sua história em Angola, com bispos e pastores (angolanos e brasileiros) mergulhados num autêntico “fogo cruzado”, desde 2019. 

Esta igreja enfrenta processos judiciais e assiste a um movimento de contestação cada vez mais intenso, que põe responsáveis da estrutura directiva, afectos aos dois países, em rota de colisão. 

Trata-se de um processo de desfecho imprevisível, que já começa a afectar a fé de milhares de fiéis, pondo, inclusive, em causa relações de amizade e irmandade que transcendem a religião. 

É sobre a trajectória dessa denominação religiosa que a ANGOP produz este dossier, com detalhes sobre nuances da sua implantação, do papel social e eventual destino no país. 

Os textos que se seguem visam abrir espaço para uma ampla reflexão sobre a capacidade de influência da igreja de Edir Macedo, sobre a sua relação com o Estado e sobre a forma como aplica os dízimos, ditos milionários, a favor da prosperidade dos fiéis, particularmente angolanos. 

Entre em contacto neste dossier com as razões de fundo que levam ao acirrar da crise na IURD e como se pode perspectivar o final desse “braço-de-ferro”, sem pôr em causa as relações de amizade e cooperação entre Angola e o Brasil, estabelecidas desde 1975.

Do Brasil para o Mundo, IURD “atrai” milhões

Sé há uma nota marcante no processo de criação e expansão da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) esta é, seguramente, aquilo que a imprensa brasileira convencionou chamar de “mão-de-ferro” com que Edir Macedo dirige os destinos da Igreja.

Por via dessa actuação, o líder religioso, um dos mais poderosos da “estrutura eclesial” do Brasil, gera, quase que permanentemente, conflitos internos na hierarquia. 

Como resultado disso, Macedo lançou, recentemente, uma batalha judicial contra o bispo Romualdo Panceiro, seu antigo número dois, por alegado uso de símbolos pertencentes à IURD. 

Panceiro era apontado por Macedo como o seu sucessor, mas rompeu com o ex-chefe e lançou, em Junho passado, uma igreja que passou a designar “Igreja das Nações do Reino de Deus”.  

Desde então, passou a usar como símbolos da nova organização religiosa uma pomba branca, semelhante à utilizada pelo grupo de Edir Macedo, embora esteja junto de uma cruz. 

Nove outros bispos deixaram, definitivamente, a Igreja Universal do Reino de Deus, nos últimos quatro anos, incluindo, em 2019, Rogério Formigoni, ex-apresentador do programa religioso Nação dos 318, dirigido a empresários e transmitido pela TV Record. 

Formigoni abriu recentemente, em Belo Horizonte, a Igreja Hospital da Alma, assim como o ex-bispo da Universal João Leite fundou, também, em 2019, no Rio, a Igreja do Tratamento Espiritual. 

Vários outros antigos bispos foram transferidos por Macedo, estrategicamente, para outros países, incluindo Honorilton Gonçalves, actualmente destacado em Angola.  

Segundo observadores e estudiosos da trajectória da IURD, a ideia é deixar terreno livre, no Brasil, para o crescimento do seu genro, Renato Cardoso, actual número dois da congregação. 

Conquanto, antes de cofundar a IURD, em 9 de Julho de 1977, no Rio de Janeiro, com o seu cunhado Romildo Ribeiro Soares, Edir Macedo pertencia à Igreja “Nova Vida”, do missionário pentecostal canadiano Robert McAlister, chegado ao Brasil, em 1960. 

Mas os desentendimentos com Soares foram tão madrugadores que, no ano seguinte, romperam as relações e este criou a “Igreja Internacional da Graça de Deus”.

A igreja do cunhado nasceu em 1980, também no Rio de Janeiro.

Na verdade, conforme estudos, antes de se autoproclamar “Bispo”, Macedo terá trabalhado como caixeiro da loteria no estado do Rio de Janeiro.  

Aos 20 anos de idade, abandonou o catolicismo e converteu-se ao pentecostalismo, ingressando na Igreja Nova Vida, onde esteve 10 anos, antes de dar corpo à Igreja Universal. 

Hoje, quatro décadas depois, a IURD diz ter mais de nove milhões de fiéis em mais de 180 países, incluindo 23 africanos, sendo mais popular em geografias de língua oficial portuguesa.  

No Brasil, onde lhe são atribuídos mais de seis mil templos, 12 mil pastores e um milhão e 800 mil fiéis, é apresentada como a maior organização religiosa de orientação neopentecostal e a quarta evangélica. 

O seu líder é, por sua vez, descrito como um dos homens mais poderosos e mais ricos do Brasil, com uma grande influência na esfera política.  

Edir Macedo movimenta multidões e construiu um império empresarial na área da comunicação social, que ele elegeu como a melhor solução para se expandir. 

Pregando a chamada “Teologia da Prosperidade”, muito rapidamente conquistou o resto do Mundo, com a instalação de templos nas principais capitais, desde os Estados Unidos à Europa, passando pela África Subsariana, a começar pela lusofonia.   

Nos Estados Unidos, Nova Iorque foi a primeira cidade a acolher a Igreja de Edir Macedo, em 1986, enquanto Portugal foi o primeiro país escolhido, na Europa (1989), antes chegar a vez do Japão, no continente asiático, em 1996.    

Denúncias, escândalos e polémicas  

O misto de polémicas e escândalos, por denúncias de alegadas práticas ilegais ou criminosas, não é um fenómeno novo na história da Igreja Universal do Reino de Deus.

Muito menos são de hoje as quezílias da luta de poder dentro da “seita” liderada por Edir Macedo, cuja sede, o “Templo de Salomão”, está em São Paulo, do sul brasileiro.   

Na essência, trata-se de problemas que vêm desde o berço, cujos incidentes mais frequentes foram quase sempre os mesmos, com as mesmas raízes: suspeitas de lavagem de dinheiro, fraude fiscal, falsificação de documentos, evasão de divisas, intolerância religiosa, entre outros. 

Esterilidade por vasectomia ou aborto, estelionato, charlatanismo, satanismo, tráfico de crianças, feitiçaria, corrupção e discriminação racial completam o quadro de queixas com que a Igreja se vem deparando, ao longo de várias décadas. 

Num dos episódios mais recentes, um grupo de mães portuguesas manifestou-se, em Lisboa, com promessas de processar o Estado, porque a prescrição impediu o prosseguimento da investigação sobre uma hipotética participação da IURD numa rede de adopção ilegal de crianças. 

A denúncia desse aparente crime foi feita numa reportagem da TVI. 

Os factos denunciados, em 2017, teriam ocorrido nos anos 90, envolvendo pelo menos 10 crianças portuguesas acolhidas num lar da IURD, em Lisboa, mas a Polícia Judiciária diz tratar-se de crimes que prescrevem no tempo, ou seja, ultrapassaram os 20 anos previstos por Lei. 

A história recente da IURD é cheia de peripécias. Em 2019, uma revolta popular depredou vários templos da Igreja em São Tomé e Príncipe, em protesto à prisão, na Côte d’Ivoire, de um pastor são-tomense que teria, alegadamente, exposto os abusos da instituição contra africanos. 

Ameaças de expulsão do arquipélago teriam levado a IURD a retirar a queixa contra Iudumilo da Costa Veloso, por difamação, depois de lhe atribuir denúncias de evasão de divisas, discriminação e humilhação de pastores, por via da esterilização, para se dedicarem à causa de Macedo. 

Em Angola, um dos países com mais templos da IURD fora do Brasil, os pastores locais que já vinham emitindo sinais de aparente fadiga ou mensagens de advertência declararam, este ano de 2020, ruptura definitiva com a Sede, pelas mesmas razões.    

Nesse país africano, famílias inteiras choram eternamente, apontando o dedo à IURD de lhes ter “arruinado as vidas, forçadas a doar à Igreja tudo o que tinham, com a promessa de viverem milagres divinos. Depois de muito investirem, tudo se revelou em autênticas miragens. 

Mas o Templo de Salomão considera as alegações como infundadas e maldosas. No Brasil, elas são consideradas mera “perseguição política, empresarial e religiosa” e, em África, “puro exercício de xenofobia” ou calúnia. 

No caso particular das vasectomias ou abortos, a sede defende-se que são opções livremente feitas pelos pastores, o que, para muitos, contrasta como o vigor e a obsessão com que a hierarquia promove publicamente a esterilidade. 

A mesma defesa também seria válida para dízimos e outras doações, mas os pastores falam em metas que têm que ser rigorosamente atingidas, em termos de angariação de pecúnia, sob pena de sanções diversas, que vão desde a baixa salarial à despromoção. 

Obrigatoriedade ou voluntariedade? 

Numa das citações mais populares da sua autobiografia, Edir Macedo escreve que “actualmente grande parte dos nossos pastores opta, ‘voluntariamente’, pela decisão de não ter filhos, por entender ser assim possível uma dedicação maior à pregação do Evangelho”. 

“Ter filhos, hoje em dia, é um risco, significa viver numa selva. Se eu casasse hoje, jamais teria filhos, embora Deus me tenha concedido três filhos extraordinários. Aconselho abertamente os membros e os pastores a não terem filhos”, sentencia o bispo de São Paulo. 

Em 1995, a Globo apresentou uma reportagem na qual Edir Macedo ensinava pastores a convencer fiéis a doar dinheiro para a IURD. Circulou então um vídeo no YouTube em que o bispo afirma que os pastores têm de ser firmes ao pedir doações. 

“Tem de ser assim: você vai ajudar na obra de Deus? Se não quiser ajudar, Deus arrumará outra pessoa para ajudar. Entendeu como é que é? Se quiser [dar dinheiro], amém, se [o fiel] não quiser, ou dá ou desce”, dizia Macedo. 

O bispo recorreu depois à Justiça para pedir que o vídeo fosse retirado do ar, solicitação esta rejeitada. 

Actualmente, a IURD é citada em mais de 100 processos judiciais de fiéis brasileiros contrários às suas práticas, tendo já sido condenada a indemnizar algumas das vítimas da esterilização ou ainda a restituir doações feitas por coacção.   

Numa das decisões, o Tribunal manifestou a convicção de que houve uma “imposição da realização da vasectomia” o que constitui uma “grave violação ao direito do trabalhador ao livre controlo sobre o seu corpo” e uma “indevida intromissão (…) na vida do trabalhador”. 

Certamente, como é próprio da imperfeição da Justiça humana, nem todos os queixosos tiveram ou terão a mesma sorte, dando-se ou podendo dar-se casos em que a decisão seja no sentido contrário. 

Nos Estados Unidos, por exemplo, duas situações similares entre si tiveram desfechos opostos, na mesma cidade, entre 1998 e 1999.  

Francisco Martinez, um dos fiéis, processou a IURD de Houston, por lhe obrigar a dar dízimos avultados  até 30 mil dólares, e conseguiu uma indemnização de 2,1 milhões de dólares. 

Mas a um casal que, nas mesmas condições, doara 60 mil dólares, foi-lhe dito que nada havia de ilegal, porque “a oferta ocorreu de forma voluntária”. 

Relacionamento fora da IURD 

Para além da questão dos conflitos internos, a Macedo nunca faltaram problemas de relacionamento com a sociedade no geral, ou seja, com outras instituições religiosas e com os Estados. 

Os primeiros grandes dissabores do bispo e a sua primeira batalha jurídica surgem com a compra, em 1989, da rede TV Record, uma transação que mudou definitivamente o rumo da IURD e que viria a ser a principal fonte da actual fortuna bilionária do bispo. 

A compra da Record, hoje a segunda mais importante rede televisiva do Brasil, a seguir à Globo, teria custado USD 45 milhões de dólares. 

Uma investigação da autoridade tributária brasileira, lançada na altura, concluiu que Edir Macedo teria utilizado empréstimos sem juros da IURD, para financiar a aquisição, feita em nome próprio e não da Igreja, mas sem declarar esse rendimento. 

Macedo, a sua mulher (como accionista) e outros bispos envolvidos no negócio não tinham dinheiro suficiente para adquirir a Record por 45 milhões de dólares e os seus nomes teriam sido utilizados para ocultar a verdadeira origem do dinheiro, a IURD, que por lei não poderia ser dona da emissora. 

De acordo com o Ministério Público, Macedo e outros responsáveis da IURD teriam passado o dinheiro oriundo dos dízimos dos fiéis para empresas de fachada registadas em nome da Igreja, isenta de impostos.  

O dinheiro seguiria então directamente para paraísos fiscais, nas ilhas Caimão e na ilha Jersey, antes de regressar ao país para ser utilizado em benefício dos envolvidos, nomeadamente na compra e expansão de meios de comunicação social, incluindo a Record. 

Depois de condenado, Macedo recorreu da decisão, argumentando que a compra foi feita em nome da IURD, para criar “a primeira televisão evangélica do Mundo”.  

Mas, perante a proibição legal, Macedo recuou para finalmente confessar que comprara a Record para si próprio, o que lhe valeu uma absolvição, em 2011, com a justificação de que ele controla completamente a IURD, que usa em seu benefício particular. 

Por isso, apesar do impedimento legal, a IURD controla hoje 23 emissoras de televisão, 40 rádios, dois jornais diários e duas gráficas onde, além de jornais de circulação nacional e regional, é impresso também o jornal oficial da Igreja, a Folha Universal.  

Quase nada está em nome da IURD, mas tudo em nome de alguns dos mais importantes bispos da Igreja e do próprio Macedo. 

Segundo a imprensa brasileira, para garantir que o património nunca saia do domínio da IURD, mesmo em caso de conflito da Igreja com os bispos e seu abandono, estes últimos são obrigados a confessar, na compra de empresas ou participações, dívidas fictícias para com a Igreja no valor das aquisições.  

Os bispos adquirentes têm igualmente de celebrar um contrato de passagem dos títulos para um outro, não especificado na altura e a ser escolhido quando e se necessário, indicam as mesmas revelações. 

Os lucros da Record teriam aumentado exponencialmente, muito graças ao dinheiro que a IURD lá coloca para pagar algumas horas de emissão diárias, vindo dos dízimos pagos pelos fiéis.  

Edir Macedo diz que tudo o que faz com a Record e a IURD é puramente para fins religiosos, mas os seus detractores acusam-no de apenas usar a IURD para financiar a Record e enriquecer-se. 

Chegou a estar preso por charlatanismo, em 1992, no Brasil, e respondeu em dezenas de outros processos por lavagem de dinheiro, uso de documentos falsos, obtenção ilícita de património, curandeirismo e estelionato, como crimes contra a boa-fé dos fiéis. 

A 12 de outubro de 1995, dia do feriado nacional em honra da Nossa Senhora de Aparecida, a padroeira do Brasil, o bispo Sérgio von Helde insultou, esmurrou e pontapeou uma estátua da Nossa Senhora, durante o programa “O Despertar da Fé”, da Rede Record. 

O bispo criticou a tradição católica de venerar imagens de santos (que as igrejas protestantes consideram idolatria) e pontapeou a estátua para provar que se tratava de um simples objecto, gerando aquilo que ficou conhecido como “Chuto na Santa”.  

A atitude chocou o país, maioritariamente católico, e desencadeou dezenas de processos em tribunal contra Von Helde e a IURD por intolerância religiosa, obrigando o próprio Macedo a intervir e pedir desculpas publicamente. Von Helde acabou por abandonar a IURD. 

Além-fronteiras, a IURD foi banida duas vezes, na Zâmbia, em 1998 e 2005, por alegadas “práticas não cristãs” e promoção de “rituais satânicos”.

O Governo revogou as autorizações de trabalho dos seus pastores, antes de a Igreja ser permitida a voltar a operar normalmente por decisão judicial. 

A Igreja recorreu da decisão, alegando não ter tido a oportunidade de apresentar a sua versão dos factos e ter sido alvo de “ódio público e perseguição”. 

Ainda em 2005, Madagáscar também proibiu a Igreja e ordenou a expulsão dos pastores por alegado escândalo de “queima de Bíblias e outros objectos religiosos em público”.   

A IURD voltou a defender-se que as acusações eram “ridículas”, porque ela também utiliza a Bíblia nos seus cultos e a medida foi finalmente levantada.   

Outros problemas surgiram em alguns países do ocidente com denúncias de escândalos na imprensa em países como os Estados Unidos, o Reino Unido e na Bélgica, onde chegou a ser considerada “uma seita perigosa” e ver removida, em Londres, a sua publicidade sobre os poderes de cura de doenças. 

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