A relação de proximidade entre o homem e os animais é histórica. Começa ainda nos primórdios da própria humanidade. Interactiva e recíproca, em muitos casos, ela tende a ter repercussões negativas, em especial quando o animal contrai a raiva. Muitos casos acabam em morte. No país, a doença matou, só nos últimos sete meses, 127 cidadãos.
O gosto por animais leva pessoas, como José Moisés, a comprar um cão. Na altura com 34 anos, a viver no município de Viana, com a mulher e dois filhos menores, deu ao animal o nome de Dog. Um ano depois, ainda não o tinha vacinado.
Num sábado, quando se preparava para dar o jantar ao animal de estimação, ficou distraído ao telefone e acabou sendo atacado por Dog. Por ter sido um simples arranhão, ignorou. Limpou, apenas, a ferida com água. 30 dias depois, José Moisés ficou doente. A família levou-o ao hospital, onde foi identificado sintomas do vírus antropozoonose, transmitido pela inoculação do vírus da raiva.
A doença, contou a esposa Maria do Carmo, de 29 anos, tinha sido transmitida pelo cão e o marido ainda lutou muito pela vida, mas, meses após o diagnóstico, acabou por falecer, devido ao estado avançado da doença. Hoje, com três filhos para cuidar, Maria do Carmo lamenta a negligência por não ter vacinado o cão.
O mesmo sucedeu com Manuel Joaquim, de 30 anos, que, ao invés de um animal doméstico, foi mordido por um gato vadio, no bairro da Bananeira, município do Cazenga, quando queria agarrar este.
Se os dois jovens morreram, o mesmo já não se pode falar de Sebastião Gingongo, de 5 anos, que foi mordido por um cão na perna direita, no bairro Boa Esperança município de Cacuaco, quando jogava à bola com os amigos. Enfurecidos, os vizinhos apedrejaram o cão, um dos que vagueiam pelas ruas e sem dono, e este fugiu. Porém, 20 dias depois, o menino começou a ter febres altas e Fátima Valente, a mãe, decidiu o levar ao hospital e centros médicos públicos à procura de vacina anti-rábica, mas não encontrou.
Desesperada, foi até uma das clínicas, mas o preço por cada vacina estava além do que poderia pagar. Mas, foi aconselhada a ir ao Hospital Pediátrico de Luanda, David Bernardino, onde obteve a vacina. O menino fez 5 doses, em sistema alternado e hoje está bem de saúde.
Centenas de mortes
A raiva é uma doença transmitida ao homem pela mordedura ou arranhão de um animal infectado com o vírus antropozoonose. É uma doença de saúde pública.
A chefe de secção da direcção de Saúde Pública e Serviços de Vigilância Epidemiológica, do Ministério da Saúde, Angelina Fila, considera a raiva, uma das doenças mais letais do mundo, pelo facto da transmissão levar à morte, num espaço de 10 dias ou três meses.
A falta de conhecimento dos criadores de animais, criticou, tem sido uma das preocupações dos serviços de saúde, pelo facto de o Ministério da Saúde ter registado, de Janeiro a Agosto deste ano, 127 mortes, como consequência da mordedura de animais com raiva.
A médica informou, ainda, que todos os 127 casos registados foram a óbito, dada a letalidade da doença e ao facto desta não ter cura. “Não existe um tratamento eficaz contra a raiva, mas sim uma prevenção, mediante vacinas”.
A raiva, defendeu, é das doenças preocupantes, que deve merecer mais atenção, em especial pelo factor de transmissão, os animais, com realce aos domésticos, muito próximos das pessoas. A prevenção passa por cinco doses de vacina anti-rábica, disponíveis em hospitais, centros e postos médicos. “Mas há alturas em que a vacina sofre uma escassez”, informou.
As campanhas de prevenção contra a raiva, adiantou, têm tido um resultado satisfatório, com a participação do Ministério da Agricultura, que ajuda na sensibilização de algumas comunidades sobre a vacinação animal, enquanto a Saúde Pública cuida da parte humana.
Alguns cidadãos, criticou, demonstram não terem noção dos cuidados a ter com os animais, sobretudo quanto ao controlo, alimentação e vacinação. “Estes animais não podem comer no lixo ou ter contacto com outros animais não vacinados, pelo facto de a transmissão ser muito rápida”.
Angelina Fila disse que o município de Cacuaco tem sido dos mais acometidos com casos de raiva. Nos últimos dois meses, disse, foram registados dois casos que chegaram a óbito. “Um indivíduo com raiva tem características únicas, em especial nos estágios mais avançados da doença. Por exemplo, entra em pânico quando vê água, ou deita muita saliva”.
Registo hospitalar
O Hospital Pediátrico David Bernardino registou, de Janeiro a Dezembro do ano passado, 12 óbitos por raiva. A maioria era de crianças do município de Viana, com idades entre os três e os 12 anos.
De Janeiro deste ano até hoje, o hospital registou sete casos de crianças com raiva, dos quais seis morreram e um que não sabem o desfecho, pelo facto de o pai ter fugido com a criança.
A chefe dos serviços de neuro-infecciologia do Hospital David Bernardino, Juliana Miranda, pediu a recolha dos animais vadios, em especial os cães, pelo facto de muitos estarem infectados com raiva. “As pessoas com animais em casa, devem fazer regularmente as vacinas e evitar que tenham contacto com outros de rua”, recomendou.
Traumas pelos pacientes
A médica Juliana Miranda disse ser traumatizante lidar com crianças mordidas por cães raivosos, em estado terminal da doença, nos hospitais. “Geralmente, elas estão conscientes do desfecho e pedem encarecidamente que as ajude”, lamentou, adiantando que os pais, às vezes, também não conseguem entender a letalidade da doença.
Alguns pais, criticou, são negligentes e começam a fazer o tratamento em casa. “O aconselhável é fazer imediatamente a vacina anti-rábica num hospital. Em casa, pode lavar a ferida com água e sabão, assim como levar o animal a um veterinário para acompanhamento.
Responsabilidade penal para os donos dos animais
O jurista Valdemar José lembrou que as lesões provocadas pelos cães incidem essencialmente em dois bens jurídicos fundamentais, a integridade física e a vida. “Havendo a lesão de qualquer um dos referidos bens jurídicos, os seus autores deveriam ser responsabilizados, por homicídio ou ofensas à integridade física”, defendeu, acrescentando que no país tal não é possível, ainda, atendendo o princípio da legalidade, espelhado no artigo 1º, do Código Penal.
“Com base no princípio da legalidade, só pode ser punido criminalmente por um facto descrito no momento da sua prática e não é permitido o recurso à analogia, nem à interpretação extensiva, para qualificar um facto como crime”, destacou.
Para o jurista, estas limitações são uma lacuna. “Se interpretarmos os crimes de ofensa simples ou grave à integridade física, previstos nos artigos 159º e 160º, do Código Penal, depreende-se que a lesão ao corpo da vítima terá de ser provocada pelo agente ou autor do crime e não pelo animal, que passa agir de forma inusitada e descontrolada, porque o vírus da raiva afecta o sistema nervoso central do animal, tornando-o agitado e desobediente às ordens dos donos, podendo mesmo, atacar os próprios, por não os reconhecerem”, esclareceu.
Em cenários muito específicos, o dono do cão poderia responder pelos crimes acima mencionados se, dolosamente, sabendo que o cão estava infectado com o vírus da raiva, ainda assim o mantivesse vivo, em sua guarda, para atacar quem, eventualmente, passasse pelas imediações da sua propriedade. “O grande problema para este hipotético cenário, seria provar se o dono do cão agiu com dolo intencional ou eventual”.
Mesmo que o dono do cão não tivesse a intenção de deixar este atacar alguém, continuou, por amor, ou não ter a coragem de o executar “e, por algum descuido ou acto negligente, o animal saísse de casa e fosse à rua atacar outra pessoa, o dono também não poderia ser responsabilizado criminalmente por homicídio negligente”.
Tal medida vale mesmo no caso da pessoa atacada falecer, visto que, com base na legislação, a responsabilidade recai para o animal e não muito na negligência do seu dono. “Acredito que a lei deveria ser escrita de forma que quem, por dever de cuidado (negligência), deixar de adoptar medidas de segurança que possam contribuir para a morte de alguém, fosse punido com a pena de X anos de prisão ou multa de Y”, acrescentou, adiantando que só assim, o dever de cuidado seria exigido ao dono do animal e qualquer dano ou lesão provocado por este e imputado ao mesmo.
O jurista explicou, ainda, que independentemente de o dono do cão não ser responsabilizado criminalmente, ele pode responder civilmente, pelos danos e lesões provocados à vítima, nos termos dos artigos 493º e 495º do Código Civil, bem como pela violação dos artigos 3º e 7º, da Lei 12/11, de 16 de Fevereiro, das Transgressões Administrativas.
Fases da doença
A médica Juliana Miranda explicou que a raiva tem fases, uma mais grave, capaz de provocar acessos de fúria e também paralisia. A maior parte das crianças infectadas, lamentou, chegam ao Hospital Pediátrico David Bernardino num estágio já muito avançado. “Geralmente sobrevivem entre dois a três dias e acabam por morrer”.
Como a raiva é uma doença viral, o tratamento, esclareceu, é geralmente paliativo. “Muitas dessas crianças são mordidas pelos cães e não dizem nada aos pais, por medo de represálias. Quando estes se apercebem, já é tarde. Acabam por chegar ao hospital num estado avançado. Há casos que os pais só percebem da doença quando as crianças são diagnosticadas”, contou, além de pedir aos pais mais vigilância dos menores.
A prevenção, destacou, deve ser feita mesmo no caso da mordida ser de um cão de casa. “É fundamental levar o menino para apanhar a vacina anti-rábica no mesmo dia que foi mordido”, disse, além de informar que todo o cuidado é pouco. “Mesmo se for um cão já vacinado, o melhor é ir fazer a vacina, pois não se sabe se este contraiu a raiva no contacto com outros cães”.
O animal que ataca, aconselhou, deve ser levado ao veterinário para ser posto em observação até ao décimo dia. Mas, a pessoa mordida deve começar logo a fazer a vacina anti-rábica. “Se o cão não morrer até ao décimo dia, então se pode suspender as últimas duas doses da vacina anti-rábica”.
O período de encubação da raiva, referiu, vai de um mês até um ano, embora hajam relatos de que pode chegar até um ano. “Há casos de pessoas com sintomas no segundo ou terceiro mês após a mordida. Isso tem muito a ver com o local onde foi mordido e com a quantidade de vírus inoculado”, aclarou.
Nas crianças, descreveu, os primeiros sintomas da doença tendem a ser um mal estar, que inclui casos de cefaleia, irritabilidade e febre baixa. “As crianças mordidas vêm num estado avançado e já com medo da água, até para beber. Outro sintoma é a incapacidade de engolir comida, ou as dificuldades respiratórias”.
Além dos cães, alertou, outros animais, como os morcegos, gatos, macacos e até gado bovino podem transmitir a raiva. “Temos de ter sempre cuidado com os cães, por serem os animais mais próximos das pessoas, assim como os gatos, em especial com as crianças”, disse.
A médica instigou, ainda, os pais que trabalham o dia todo, para, quando chegarem à casa, observarem bem as crianças, em busca de possíveis sinais de lesões no corpo. “A vacina só protege caso seja administrada logo depois da pessoa ter sido mordida”, aconselhou.