Um jornalista do Financial Times investigou a corrupção instalada nas capitais africanas, com Luanda em grande destaque. Aqui está o capítulo dedicado a Angola.
Só para se ter uma ideia com essa investigação nada fica escondido, o investigador dessa peça jornalística, não mediu a sua coragem e muito menos as consequências futuras sobre a África. Os ricos de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São e Príncipe, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, são todos filhos desses países podem devolver o dinheiro retirado dos cofres do Estado na normalidade sem processos coercivos. Aqui deve imperar o bom censo.
África é o continente mais pobre do mundo – e também o mais rico. Embora concentre apenas 2% do PIB mundial, alberga 15% das reservas de petróleo, 40% do ouro e 80% da platina. No seu subsolo jaz um terço das reservas minerais do planeta. Mas o que poderia constituir a salvação do continente é, pelo contrário, uma maldição. Tom Burgis, jornalista do Financial Times que foi durante anos correspondente em África, faz um relato poderoso das complexas teias de relações entre o crescente poder chinês, a corrupção das elites africanas e o delapidar do património natural das nações do continente – é o livro A Pilhagem de África, da editora Vogais. O primeiro capítulo começa por Angola, neste excerto que aqui lançamos em pré-publicação.
Pouco mais do que medo e esgotos correm pela encosta inclinada que separa o complexo presidencial de Angola do bairro de lata ribeirinho mais abaixo. Dilatado por refugiados que fugiram de uma guerra civil que durante três décadas ora estalava ora parava no interior, Chicala estende‐se a partir da marginal principal de Luanda, a capital. De tempos a tempos o oceano envia uma tempestade que arrasa as habitações pobres. Os barqueiros afadigam‐se nas enseadas, enquanto os seus passageiros se habituam ao mau cheiro que emana das águas.
Este não é o rosto que Angola prefere apresentar ao mundo. Desde o fim da guerra civil, em 2002, esta nação de 20 milhões de pessoas registou algumas das taxas de crescimento económico mais altas da década, por vezes ultrapassando mesmo a China. Os campos de minas cederam o lugar a novas estradas e caminhos de ferro, parte de uma tentativa multibilionária para reconstruir um país que um dos piores conflitos por procuração da Guerra Fria tinha desfeito quase totalmente. Hoje, Angola ostenta a terceira maior economia da África subsariana, depois da Nigéria e da África do Sul. Luanda figura consistentemente no topo das cidades mais caras do mundo para estrangeiros, à frente de Singapura, Tóquio e Zurique. Em hotéis de cinco estrelas cintilantes como o que se encontra ao lado de Chicala, uma sanduíche normal custa 30 dólares. A renda mensal de uma casa de luxo de três quartos, não mobilada, é de 15 mil dólares. Os concessionários de carros de luxo fazem negócio rápido reparando os SUVs daqueles cujo rendimento cresceu mais depressa do que se conseguem tapar os buracos das estradas congestionadas. Na Ilha de Luanda, a faixa costeira glamorosa de bares e restaurantes que fica a pouca distância de barco de Chicala, os filhos da elite deslocam‐se a terra saindo dos seus iates para repor os seus stocks de Dom Pérignon a 2000 dólares por garrafa.
Os caminhos de ferro, os hotéis, as taxas de crescimento e o champanhe, todos vêm do petróleo que se encontra debaixo dos solos e do mar de Angola. E o medo também.
Em 1966, a Gulf Oil, uma empresa petrolífera americana que estava entre as chamadas sete irmãs que então dominavam a indústria, descobriu reservas espantosas de petróleo em Cabinda, um enclave separado do resto de Angola por uma faixa do seu vizinho, o Congo. Quando a guerra civil rebentou após a independência, em 1975, as receitas do petróleo sustentavam o governo comunista no poder do Movimento Popular de Libertação de Angola, ou MPLA, contra os rebeldes apoiados pelo Ocidente, a Unita. Vastas novas descobertas ao largo da costa subiram a parada nos anos 90 do século passado, tanto para as fações em guerra como para os seus aliados estrangeiros. Embora o Muro de Berlim tivesse caído em 1989, a paz só chegou a Angola em 2002, com a morte de Jonas Savimbi, o líder da Unita. Por essa altura já cerca de 500 mil pessoas tinham morrido.
Os caminhos de ferro, os hotéis, as taxas de crescimento e o champanhe, todos vêm do petróleo que se encontra debaixo dos solos e do mar de Angola. E o medo também.
O MPLA achou que a máquina do petróleo que construíra para sustentar o seu esforço de guerra podia ter outra utilidade. «Quando o MPLA deixou cair a sua ideologia marxista no início dos anos 90», escreve Ricardo Soares de Oliveira, uma autoridade em assuntos angolanos, «a elite no poder converteu‐se entusiasticamente ao capitalismo de compadrio». A corte do presidente — algumas centenas de famílias conhecidas como o Futungo, por causa do Futungo de Belas, o velho palácio presidencial — aventurou‐se na «privatização do poder».
Fundindo o poder político e económico como muitas elites pós‐coloniais, os generais, os manda-chuvas do MPLA e a família de José Eduardo dos Santos, o líder do partido formado na União Soviética que assumiu a presidência em 1979, apossaram‐se das riquezas de Angola. Isabel dos Santos, a filha do presidente, acumulou participações financeiras que se estendem desde a banca à televisão em Angola e Portugal. Em janeiro de 2013, a revista Forbes nomeou‐a a primeira mulher bilionária de África.
A tarefa de transformar a indústria do petróleo de Angola que era dedicada ao orçamento de guerra numa máquina para o enriquecimento da elite de Angola em tempo de paz recaiu sobre um homem baixo e forte, de cara redonda, sorriso vencedor e bigode aparado chamado Manuel Vicente. Abençoado com aquilo a que um colaborador chama «uma cabeça que parece um computador no que diz respeito a números», em jovem ensinara crianças em idade escolar para suplementar os seus magros rendimentos e sustentar a família.
Vicente poliu o seu inglês e o seu conhecimento da indústria petrolífera no Imperial College, em Londres.
Depois de um período como instalador aprendiz, estudou engenharia eletrotécnica. Embora tivesse sido criado por um sapateiro pobre de Luanda e pela sua mulher, uma lavadeira, Vicente acabou por se associar à irmã de José Eduardo dos Santos, assegurando, assim, um laço com o presidente. Enquanto outros quadros do MPLA estudaram em Baku ou Moscovo e voltaram para Angola para fazer a guerra de guerrilha contra a Unita, Vicente poliu o seu inglês e o seu conhecimento da indústria petrolífera no Imperial College, em Londres. Em Angola, começou a sua ascensão através da hierarquia do petróleo. Em 1999, quando a guerra entrou nas suas movimentações finais, o presidente nomeou‐o para dirigir a Sonangol, a empresa petrolífera estatal angolana que funciona, nas palavras de Paula Cristina Roque, perita em assuntos angolanos, como «o principal motor económico» de um «governo‐sombra controlado e manipulado pela presidência».
Vicente tornou a Sonangol numa empresa formidável. Conduziu negociações duras com os gigantes do petróleo que gastaram dezenas de milhares de milhões de dólares no desenvolvimento das plataformas petrolíferas de Angola, entre eles a BP, do Reino Unido, e a Chevron e a ExxonMobil, dos Estados Unidos. Apesar das negociações duras, Angola encantou os gigantes e os seus executivos respeitavam Vicente. «Angola é para nós uma terra de sucesso», disse Jacques Marraud des Grottes, responsável pela exploração e produção africana da francesa Total, que extraiu mais petróleo do país do que qualquer outra empresa.
Durante o mandato de Vicente, a produção petrolífera quase triplicou, aproximando‐se dos 2 milhões de barris por dia — mais do que um em cada 50 barris extraídos em todo o mundo. Angola rivalizava com a Nigéria pela coroa de principal exportador de petróleo de África e tornou‐se o segundo maior fornecedor da China, depois da Arábia Saudita, ao mesmo tempo que também exportava quantidades significativas para a Europa e para os Estados Unidos. A Sonangol atribuiu a si próprias participações em explorações petrolíferas de empresas estrangeiras e usou as receitas para introduzir os seus tentáculos em todos os cantos da economia nacional: imobiliário, cuidados de saúde, banca, aviação. Até tem uma equipa de futebol profissional. A entrada da torre ultramoderna no centro de Luanda que acolhe a sua sede está revestida de mármore, com assentos confortáveis para as resmas de emissários do Ocidente e do Leste que vêm procurar petróleo e contratos. Poucos conseguem acesso aos pisos mais elevados de uma empresa comparada por um estrangeiro que ali trabalhou ao «Kremlin sem os sorrisos». Em 2011, as receitas de 34 mil milhões de dólares da Sonangol rivalizavam com as da Amazon ou da Coca‐Cola.
OBSERVADOR