Os povos da Lunda-Norte praticavam com mestria várias danças, por vezes executadas por akishi, tais como a tchianda, tchisela, kalukuta, kandowa, makhopo, maringa, kandjendje e likembe, isto tanto em cerimónias festivas e na recepção de visitantes como nos rituais de entronização de chefes tradicionais e em sessões de puro entretenimento, sempre apoiadas por uma variedade de instrumentos musicais.
Destes destacam-se os batuques, cingunvu, ndjimba, cissanje e muiyemba (xilofones). Há que referir também a intervenção dos akishi com as máscaras cikunza (patrono da mukanda), cikungu (ligada às cerimónias de investidura dos grandes chefes tradicionais), mwana phowo (que representa a beleza e o encanto das mulheres cokwe), cihongo (que representa a coreografia tradicional cokwe) e katoyo (representante das danças recreativas), entre outras lúdicas ou jocosas.
No actual estado de coisas certas actividades culturais deixaram de ser executadas, nomeadamente a Mukanda – conhecida vulgarmente por circuncisão tradicional ou rito de iniciação masculina -, o Kafundeji, escola de preparação feminina -, e o Tchota ou Jango, onde eram observados os ritos para a educação dos jovens.
De acordo com o chefe do Departamento da Cultura, Património Histórico e das Comunidades Tradicionais, José Fernando Pinto, as autoridades tradicionais jogavam um papel preponderante, no passado, para a moralização da sociedade, o que não tem acontecido nestes últimos tempos, visto que, segundo disse, abandonaram as suas aldeias e se fixaram nos cascos urbanos. “Não será possível resgatarmos os nossos hábitos e costumes se o soba ou regedor ser um citadino. Como é que ele vai poder gerir conflitos na sua aldeia de origem se nem sequer reside lá? Os tchotas só vão funcionar se existir presença da autoridade tradicional. Para tal, o mesmo deve viver junto à sua comunidade”, frisou José Pinto.
O responsável, que falava durante um encontro sobre o resgate dos valores morais, cívicos e culturais, promovido pelo Gabinete Provincial da Juventude, Desporto, Turismo e Cultura, lamentou, ainda, que se desleixe a prática das boas maneiras com os mais velhos da aldeia e o respeito pelos usos e costumes da linhagem, como por exemplo o saber tocar o butuque, dançar a tchianda e oferecer a custo zero a hospedagem e a alimentação a estranhos na condição de visitantes.
No encontro, que contou com a presença de autoridades tradicionais e académicos, o também antropólogo José Pinto disse que os povos que há séculos habitam a província, predominantemente Cokwe, sempre foram uma referência de identidade cultural e de boa conduta dos adolescentes e jovens, tanto no seio familiar como na comunidade.
As maneiras próprias de vestir, falar, andar e cumprimentar eram, segundo José Pinto, práticas obrigatórias por parte de todos os membros da comunidade. E as pessoas mais velhas detinham o respeito e a admiração, já que eram vistas como “bibliotecas vivas”. “Os anciãos eram figuras proeminentes e dignas de atenção na partilha das suas experiências de vida com os jovens. Hoje estão a ser desvalorizados”, referiu.
O antropólogo lembrou que uma sociedade só é valorizada se tiver os pilares da cultura, dos seus hábitos e costumes bem preservados. “O pior analfabeto não é só aquele que não sabe ler e escrever, mas sim aquele que ignora a sua identidade cultural”, disse José Pinto, parafraseando a UNESCO. O responsável sublinhou que a população da Lunda-Norte tem sofrido muitas influências culturais, daí a necessidade do resgate dos seus valores tradicionais, “de formas a não desembocar numa aculturação sem precedentes”.
Tchota ou jango
Tchota era um lugar onde, para além de resolver problemas difíceis, tais como mortes, roubos ou traições no quadro das relações matrimoniais, também era um espaço privilegiado para a transmissão de conhecimentos através de contos e fábulas. As figuras místicas Tchingandangari (boneco animado) e Sambalo (Senhor Coelho) eram usadas para contar estórias de vida às gerações mais novas.
Com um espaço circular o local, segundo José Pinto, servia também como tribunal onde os sobas e regedores resolviam os vários litígios no seio da comunidade. E ao anoitecer o lugar transformava-se em escola onde eram transmitidos os conhecimentos dos antepassados através de estórias.
Os sobas como guardiãos das aldeias ensinavam às novas gerações, através dos contos seculares, a melhor forma de convivência em sociedade. O adultério e os homicídios por feitiçaria eram considerados dos crimes mais graves na sociedade lunda.
Mukanda
A Mukanda, que se realiza durante a puberdade, é um ritual de iniciação masculina durante o qual os pré-adolescentes são circuncisados pelo Nganga-Mukanda (o médico cirurgião). A Mukanda é a designação do campo cercado com palhotas circulares, no qual os iniciados – tundandji (plural de kandandji) – vivem afastados das suas famílias por um período de um a dois anos, geralmente no período de cacimbo. O ritual da Mukanda é da iniciativa do chefe da aldeia. A máscara kalelwa marca o início e o fim do ritual onde se proíbe, veementemente, a aproximação de mulheres.
Durante o retiro os iniciados aprendem os procedimentos das cerimónias de culto, fazem máscaras para os rituais e exercitam diferentes tipos de dança que serão executadas diante da comunidade, a fim de mostrarem o seu talento como dançarinos. Aprendem também a construir uma casa. “Este povo desenvolveu também uma arte de corte refinada e poderosa, sobretudo, através da escultura de estátuas, ceptros, tronos, instrumentos de música, entre outros. De destacar a famosa estatueta do Pensador ou Velho (Kalamba Kulu), que se tornou um símbolo de Angola”, salientou o antropólogo José Pinto.
Sobas prometem resgatar valores culturais
No evento em referência as autoridades tradicionais assumiram o desafio de resgatar os valores morais e culturais nas suas comunidades. Segundo o soba Muapulu, Henriques Quexinganji Muandumba, além dos aspectos aflorados pelo chefe do Departamento da Cultura, Património Histórico e Comunidades Tradicionais, há necessidade de se resgatar também a mahamba (plural de hamba), que é o culto aos espíritos tutelares – espíritos dos ancestrais ou da natureza – que são representados por estatuetas, árvores, pedaços de termiteiras e máscaras.
O soba disse que para garantir a protecção diária ou apaziguar um espírito são realizadas crimónias com ofertas, sacrifícios e orações. Se algum hamba estiver zangado, de acordo com Henriques Muandumba, pode provocar doenças ou prejuízos no transgressor, como a infertilidade nas mulheres e o azar na caça, no caso dos homens. “Reconheço que estes rituais estão a ser esquecidos aos poucos, infelizmente, mas os esforços devem ser envidados no sentido de se ultrapassar estes fenómenos que até são provocados pela seitas religiosas que têm confundido a mente da população da província, principalmente com a crença no feitiço”, frisou.
A sobeta da localidade de Muatchissua, Issala Margarida José, disse, depois do encontro, que se sente motivada a promover o resgate da cultura do ukule, que consiste num ritual de iniciação feminina, realizado aquando da primeira menstruação (ukule) da adolescente. Esta cerimónia é constituída por várias etapas, durante as quais a jovem (kafundeji) aprende uma dança do ventre – apreciada pelos Cokwe e que antecipa as relações sexuais -, recebe instruções sobre o acasalamento e é pintada com tatuagens púbicas (mikonda) para fins eróticos. E, juntamente com o seu futuro noivo, procede a diversos rituais que culminam na consumação do casamento.
Reza a história que o povo Cokwe vivia na Serra de Muzamba quando foi invadido, no final do século XV, pelos Lunda. A partir de 1830 conseguiu libertar-se do poderio dos invasores e empreendeu uma enorme expansão com o apoio de armas de fogo e o tráfico, essencialmente, de marfim, escravos e cera. A expansão dos Cokwe atingiu o seu auge durante os séculos XVIII e XIX, quando chegaram a apoderar-se da capital dos Lundas em 1887.
Posteriormente, enfraquecidos pelas doenças e submetidos ao domínio dos portugueses e dos belgas, os Cokwe procuraram salvaguardar a sua autonomia migrando para Leste e tornando-se semi-nómadas.
Victorino Matias / Dundo
Fonte:JA