Combate à Corrupção: Capítulo Final

0
24

A notícia espalhou-se como fogo em palha seca.

A 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pela mão dos juízes conselheiros Pedro Nazaré, Daniel Modesto e Maria Guiomar (na fotografia), decidiu, em acórdão datado de 28 de Agosto, anular a acusação e pronúncia criminal que haviam sido imputadas a Joaquim Sebastião, antigo director-geral do Instituto Nacional de Estradas (INEA).

A decisão fundamenta-se em duas razões centrais: a existência de irregularidades insanáveis na acusação e pronúncia, e a extinção do procedimento criminal por prescrição. Os juízes concluíram que a acusação não conseguiu delimitar com precisão o período em que os factos teriam ocorrido, o que comprometeu as garantias de defesa e inviabilizou a verificação objectiva do prazo de prescrição. Tal omissão, aliada à inércia do Estado em promover a acção penal dentro do prazo legal, conduziu à extinção do processo, nos termos do artigo 129.º do Código Penal. O acórdão ordena ainda o desbloqueio das contas bancárias de Joaquim Sebastião e de terceiros, bem como a restituição do património apreendido, com excepção do Centro de Estágio de Futebol, que reverte para o Estado. Não parece que esta reversão continue a fazer muito sentido, mas não se vai discutir aqui a questão.

Outra questão duvidosa e que pode levantar um debate é a da admissibilidade do recurso do despacho de pronúncia da primeira instância. De acordo com o artigo 354.º do Código de Processo Penal, o despacho de pronúncia é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, desde que não seja agravada a medida de coacção. Contudo, esta norma admite excepções, como no caso em que seja arguida, em primeira instância, a nulidade do despacho de pronúncia e a arguição for indeferida. Aí pode haver reapreciação por um tribunal superior (art.º 354.º n.º 2 e 353.º, n.º 3). Além disso, haveria no caso concreto a aplicação da lei no tempo, uma vez que os crimes teriam sido cometidos na vigência do anterior Código do Processo Penal, que era mais generoso em termos de recurso do despacho de pronúncia.

O que é bizarro é que o Tribunal Supremo escolheu uma via estranha para admitir o recurso. Em termos simples, disse que, embora o Tribunal da Relação tivesse cometido um erro ao admitir o recurso, o Supremo não o ia corrigir, e assim foi. É evidente que o Tribunal Supremo deveria ter corrigido o erro do Tribunal da Relação e não admitir o recurso, se entende que a lei o proíbe, ou então deveria ter fundamentado a sua admissão numa norma legal existente. Não o fez e inventou. Isto demonstra o que se vai enfatizar abaixo, que é a impreparação técnico-argumentativa das magistraturas para estes casos complexos.

Na verdade, não se vão analisar criticamente os aspectos técnico-legais do acórdão, mas a sua simbologia política óbvia: este acórdão marca o fim do chamado “combate à corrupção”.

Há um primeiro aspecto anedótico, e que demonstra o surrealismo da situação. Conforme Rafael Marques explicou no Maka Angola em 8 de Março de 2023, o presidente da Câmara do Crime do Tribunal Supremo, Daniel Modesto Geraldes, que assina este acórdão, vivia numa casa apreendida a Joaquim Sebastião no âmbito do processo-crime. Trata-se de uma residência T4 no Condomínio Vila Mar, no bairro do Talatona, em Luanda. Agora, Daniel Modesto Geraldes vai ter de devolver a casa, que nunca devia ter ocupado, pois sabe bem que uma apreensão é um acto provisório, a não ser que num acto de generosidade Joaquim Sebastião prescinda deste retorno. Qualquer que seja a resolução, isto demonstra o descrédito em que a Procuradoria-Geral da República e a Magistratura Judicial entraram ao permitirem estas ocupações e distribuição de prémios sem trânsitos em julgado e de forma totalmente arbitrária. Agora estão a receber o retorno. É demasiado mau e impossibilita qualquer repetição futura.

Os fundamentos da anulação da pronúncia encontram-se em todos os processos de corrupção relevantes; há sempre uma imprecisa delimitação dos factos no tempo, existem já variadas prescrições e amnistias, e muito património foi entregue de livre vontade. Estes vícios são patentes no caso Kopelipa & Dino, bem como noutras acusações, e a jurisprudência fica agora firmada.

Fica demonstrado que o sistema judicial ordinário não estava preparado para combater a corrupção, quer ao nível dos procuradores, quer dos juízes. Não teve uma abordagem técnico-legal, foi politizado e voluntarista e, no final de contas, entrou em esquemas inconfessáveis — possivelmente criminosos — que agora vêm à tona.

Não houve falta de avisos para essa impreparação. Foi uma decisão do presidente da República, que hoje certamente o assombrará, pois aí está a raiz do falhanço do combate à corrupção.

Tudo começou quando se permitiu que Isabel dos Santos fugisse do país e, em simultâneo, se apreenderam os seus bens de forma voluntariosa, mas não legalmente consistente. Hoje, a probabilidade de Isabel dos Santos voltar a Luanda e ser recebida em ombros como uma Evita Péron, e apresentar uma qualquer candidatura presidencial por um dos inúmeros partidos existentes, é uma possibilidade real. É mesmo uma forte probabilidade.

Depois, seguiu-se a decisão do Tribunal Constitucional sobre o caso dos 500 milhões (José Filomeno dos Santos), que condena a forma processual ilegal seguida. O Tribunal Supremo reagiu com um fingimento formal, mas todos percebemos que o processo tinha morrido.

E os erros são sempre os mesmos: falta de respeito pela lei processual e pelos direitos de defesa.

O processo Kopelipa & Dino tem-se arrastado de forma suspeita, mostrando mais uma vez as fragilidades judiciais no combate à corrupção. Mesmo que haja alguma condenação no Tribunal Supremo — o que começa a ser duvidoso, devido à falta de nexos de causalidade, à discrepância nas imputações criminais e às amnistias e prescrições —, o Tribunal Constitucional, muito certamente, anulará o processo.

A questão já é: como terminar com este embaraço público que se tornou o combate à corrupção? Doravante, nenhum procurador acusará ninguém, nem nenhum juiz julgará alguém, pois tudo pode voltar atrás. E, a dois anos de eleições gerais, cujo desfecho ninguém sabe — temido por uns, anseado por outros, consoante o ponto de vista —, não há um único agente da justiça que arrisque um passo. O combate à corrupção acabou.

Morto o combate à corrupção, como enterrá-lo? Se o combate à corrupção em Angola chegou ao fim, o país enfrenta agora o desafio de transformar esse encerramento num ponto de partida para reformas estruturais e duradouras.

A corrupção só poderá ser efectivamente combatida através de medidas de alcance estrutural, que incidam sobre as causas profundas do problema. Duas dessas medidas revelam-se particularmente decisivas: a dignificação salarial dos servidores públicos e a adopção rigorosa de critérios de mérito na nomeação para cargos de responsabilidade.

Em primeiro lugar, é imperativo reconhecer que os actuais níveis salariais da função pública, mesmo nos escalões mais elevados, são insuficientes para garantir uma vida condigna e compatível com as exigências dos cargos. O presidente da República, por exemplo, aufere um salário mensal total de 1.344.000 kwanzas, enquanto um ministro recebe 913.500 kwanzas. Estes valores são irrisórios quando confrontados com os custos associados ao exercício das funções, à representação institucional e à manutenção de padrões mínimos de dignidade. A disparidade entre os rendimentos oficiais e o estilo de vida observado em muitos titulares de cargos públicos levanta suspeitas legítimas sobre a origem dos recursos que sustentam tais despesas. Esta lacuna entre o salário e a realidade vivida constitui, na prática, um incentivo à procura de fontes paralelas de rendimento — frequentemente ilícitas — e alimenta a cultura de corrupção.

A dignificação salarial, portanto, não é apenas uma questão de justiça laboral, mas uma estratégia de prevenção estrutural. Ao garantir remunerações compatíveis com a responsabilidade e a complexidade dos cargos, o Estado reduz a vulnerabilidade dos seus servidores à tentação corruptiva e reforça a integridade institucional. Esta medida deve ser acompanhada de mecanismos de transparência, auditoria e responsabilização, assegurando que os recursos públicos sejam geridos com probidade e que os servidores respondam pelos seus actos.

A segunda medida essencial é a adopção de critérios de mérito na selecção e nomeação para funções públicas. O clientelismo, o favoritismo partidário e a lógica de recompensa política têm sido, historicamente, factores de degradação institucional, promovendo a incompetência, a impunidade e a captura do Estado por interesses privados. A escolha pelo mérito — baseada em competências técnicas, experiência relevante, integridade comprovada e compromisso com o serviço público — é a única via para construir uma administração eficiente, ética e orientada para o bem comum.

Enterrar o combate à corrupção com dignidade significa reconhecer os seus méritos e os seus fracassos, e transformar essa experiência num impulso reformador estruturante. Porém, isso terá de ser feito com um novo elenco, porque os actores até agora em cena falharam redondamente.

MAKA ANGOLA

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui