O CASO “HAKIMI”, À LUZ DA REALIDADE JURÍDICA ANGOLANA: CASAMENTO, DIVÓRCIO, DIREITOS PATRIMONIAIS DOS CÔNJUGES E QUESTÕES CONEXAS

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Por: Ireneu Matamba,

1. Introdução

Recentemente, a propósito de um divórcio entre o sr. Achraf Hakimi, jogador de futebol do PSG de França, que tem nacionalidade marroquina e espanhola e a senhora Hiba Abouk, actriz espanhola, surgiram reacções sem precedentes, relativamente aos direitos patrimoniais que assistem ao homem e a mulher, durante o casamento e também em caso de divórcio.

De acordo com as notícias, a esposa pretendia metade dos bens do marido e terá ficado surpreendida ao saber que os bens que seriam do marido, estariam em nome de sua mãe.

Os problemas centrais podem ser resumidos nas seguintes questões:

pode o marido ou a mulher “colocar” (transmitir) os seus bens em nome da mãe/pai ou de uma terceira pessoa, sem o consentimento do outro cônjuge?
Em caso de fim do casamento, que direitos assistem a um e outro?
Não se dispõe de dados concretos sobre o caso, fora aqueles que as notícias apresentam e estas não são bastantes para se fazer afirmações.

O caso é aqui chamado para se procurar responder às questões que podem ser colocadas em Angola, pelo que toda a análise assentará no direito angolano, em especial o da família e o das sucessões.

O direito da família regula as relações entre as pessoas ligadas entre si pelo parentesco, casamento, união de facto e afinidade.

Já o direito das sucessões trata da disposição dos bens para depois da morte de alguém que em vida não tenha feito testamento.

2. Liberdade individual e transmissão de bens

Uma das principais regras consagradas na Constituição da República de Angola é a do reconhecimento da propriedade privada e sua transmissão (artigo 37.º da Constituição da República de Angola).

Tal significa que as pessoas podem titular ou ser donas de bens e lhes assiste o direito de transmitir esses bens para quem quiserem, nos termos da Constituição e da Lei, ou seja, a referida liberdade apenas sofrerá restrição se alguma norma constitucional ou legal o permitir ou impor.

A transmissão de um bem pode ocorrer em vida ou depois da morte, mediante a vontade do interessado, ou não. Será analisada apenas a transmissão por vontade do dono do bem.

A pessoa interessada em transmitir validamente os seus bens pode socorrer-se de vários instrumentos, desde a celebração de contratos translativos da propriedade (doação, compra e venda, por exemplo – artigos 973.º. e seguintes do Código Civil e 940.º do Código Civil, respectivamente), até a feitura de testamento (acto jurídico unilateral).

No primeiro caso, dos contratos translativos, uma vez celebrados, o bem deixa de estar na esfera jurídica do transmitente. Assim, A pode vender um seu bem a uma terceira pessoa e essa pessoa passa a ser a nova dona; B pode doar (oferecer) um seu bem a uma terceira pessoa, passando a nova pessoa a ser a titular desse mesmo bem.

Uma outra forma de transmissão dos bens é por intermédio de um testamento, pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos ou parte dos seus bens (artigo 2179.º do Código Civil).

O acabado de dizer valerá, em geral, para uma pessoa que não seja casada (solteira, divorciada ou viúva), salvo o decorrente das normas sucessórias, nos termos abaixo apresentados.

Mas, para uma pessoa casada, é preciso atender-se os efeitos patrimoniais da celebração do casamento, para se saber se pode, ou não, transmitir validamente os seus bens a outra pessoa, sem o consentimento do seu cônjuge. É o que se abordará a seguir.

3. Direito da família, regime de bens do casamento e suas consequências

3.1. O que é o regime bens do casamento?

O regime de bens consiste num conjunto de normas e princípios que regulam ou disciplinam as relações patrimoniais que se estabelecem entre marido e mulher, especialmente a administração dos bens, bem como a responsabilidade pelas dívidas.

Ao contraírem matrimónio, os nubentes devem optar por um dos dois regimes consagrados na lei, nomeadamente o de comunhão de adquiridos e o de separação de bens (artigo 49.º do Código da Família).

3.2. Caracterização do regime de comunhão de adquiridos e legitimidade para transmissão de bens

No regime de comunhão de adquiridos, existe o património próprio de cada um dos cônjuges e o património comum dos cônjuges.

O património próprio é integrado, em geral, pelos bens adquiridos antes do casamento, bem como os adquiridos durante o casamento, gratuitamente, por cada um dos cônjuges e outros bens especificamente mencionados no artigo 52.º do Código da Família.

O património comum, por sua vez, é constituído por todos aqueles bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, bem como os salários, pensões ou quaisquer frutos ou rendimentos regulares recebidos por qualquer um deles, igualmente durante o casamento, ex.: vi artigo 51.º do Código da Família.

No regime de comunhão de adquiridos, a regra é a de que cada um dos esposos administra os seus bens próprios, podendo transmitir livremente os bens móveis (próprios), salvo se tiver sido passada procuração para uma terceira pessoa administrá-los, ou se forem usados pelo outro cônjuge como instrumento exclusivo de trabalho (conferir o artigo 54.º, n.º 1 e 2, do Código da Família). Pense-se na seguinte hipótese: a esposa é dona de uma viatura Toyota Hiace mas que é utilizada pelo marido, taxista. Neste caso, ela não poderá vender a viatura sem o consentimento do marido.

Quanto aos bens comuns móveis, a transmissão ou alienação dos mesmos a terceira pessoa em regra carece do consentimento ou acordo de ambos, (artigo 56.º, n.º 1, primeira parte, a contrário sensu, do Código da Família), salvo tratando-se de um bem de que algum deles tenha administração (artigo 56.º, n.º 1, primeira parte).

Já relativamente aos bens imóveis (casas, por exemplo) e o estabelecimento comercial (uma padaria, por exemplo), apenas podem ser alienados em vida, mediante acordo de ambos os cônjuges (artigo 56.º, n.º 3, primeira parte, do Código da Família).

Destarte, percebe-se que sendo a pessoa casada no regime de comunhão de adquiridos, a liberdade de disposição ou transmissão de bens sem o consentimento do outro cônjuge sofre algumas limitações, no caso dos bens móveis, próprios ou comuns, e sofre total limitação, no caso dos bens imóveis.

3.3. O regime de separação de bens

O regime de separação de bens é mais fácil de analisar e compreender, pois apenas existem bens próprios de cada um dos cônjuges (não existem bens comuns), podendo cada um deles dispor livremente dos seus bens, salvas algumas restrições impostas por lei.

Mas, ainda assim, existem casos em que a lei restringe a transmissão sem o consentimento do outro cônjuge.
Com efeito, tratando-se de bens móveis próprios exclusivamente utilizados pelo outro cônjuge como instrumento de trabalho, ou bens móveis usados pelos cônjuges na vida do lar (recheio do lar, por exemplo) ou como instrumento comum de trabalho, apenas poderão ser transmitidos por acordo de ambos (artigo 56.º, n.º 2, do Código da Família).

Com efeito e respondendo parcialmente à questão principal, sendo adoptado o regime de separação de bens, cada um dos esposos pode, em princípio transmitir os seus bens a quem quiser, sem carecer do assentimento do outro, salvas as restrições impostas pelo número 2 do artigo 56.º do Código da Família e pelas regras sucessórias, que serão abordadas abaixo (ponto 5).

3.4. Divórcio e direitos patrimoniais dos cônjuges: a questão do direito à meação nos bens comuns

Em primeiro lugar cumpre esclarecer que o direito à meação nos bens apenas se coloca no regime de comunhão de adquiridos.

Havendo fim do casamento por divórcio, a comunhão de bens conhece o seu fim, ou seja, termina (artigo 80.º, do Código da Família).

Com isto, é necessário proceder-se a liquidação do património comum (pagar as dívidas que foram garantidas pelo património comum, proceder-se à compensação entre o património comum e o(s) património(s) próprio(s) de cada cônjuge), visando apurar o seu valor, para que seja possível garantir o direito de cada cônjuge à metade desse património comum líquido.

O direito à meação independe de quem efectivamente levou certo bem para o património comum, sendo apenas relevante, em geral, que tenha sido adquirido onerosamente, na constância do casamento.

Se durante a liquidação notar-se que houve actos lícitos de disposição/transmissão de bens comuns e o resultado desse mesmo acto aproveitou apenas para o cônjuge transmitente, na parte que caberia a esse cônjuge será descontado o valor de que já se beneficiou e, se for superior ao que deveria receber, deverá compensar o património comum, com valores ou bens equivalentes.

Já se notar-se que os actos de transmissão de bens foram ilícitos (por exemplo, transmissão de bens sem o consentimento do outro, sendo exigido), e sendo superior ao que ao cônjuge transmitente caberia receber, proceder-se-á como no caso do parágrafo anterior, havendo acordo nesse sentido e, não havendo, ao cônjuge lesado assistirá o direito de impugnar judicialmente tais transmissões (por exemplo, através de acção de declaração de nulidade ou de impugnação pauliana, reunidos os requisitos, nos termos dos artigos 605.º e 610.º do Código Civil, respectivamente) e exigir uma indemnização pelos danos emergentes e, eventualmente, pelos lucros cessantes.

O recomendável é que as pessoas interessadas contratem um advogado, de preferência especialista em direito da família, das sucessões e das obrigações, que lhes possas assessorar.

4. Direito das sucessões: transmissão de bens em vida ou em caso de morte

As normas relativas ao testamento integram o direito das sucessões e limitam o direito ou liberdade de livre transmissão, através do instituto da legitima, que consiste numa imposição da lei de que certos bens sejam necessariamente destinados (transmitidos) a certas pessoas; havendo ofensa à legitima, as liberalidades feitas entre vivos ou por morte são reduzidas (artigo 2156.º do Código Civil).

Os que têm esse direito de receber certa porção dos bens são designados herdeiros legitimários ou forçados (forçados na medida em que não podem não herdar) e são os descendentes (filhos, netos…) e ascendentes (pais, avós…), como resulta do artigo 2157.º, do Código Civil).

Esses herdeiros legitimários são chamados segundo uma ordem, tendo preferência os de grau mais próximo (entre os descendentes os filhos, e entre os ascendentes os pais). Se existir alguém de uma classe preferente, os demais não são chamados (artigos 2157.º, 2133.º ao 2138.º, todos do Código Civil).

A título de exemplo, a legitima de um filho é de metade da herança. Se forem dois ou mais filhos, a legítima de todos eles será de dois terços (2/3) da herança, sendo que entre eles se fará a distribuição por cabeça (artigo 2158.º, n.º 1).

Com efeito, se alguém que tem 1 filho decidir transmitir mais de metade dos seus bens para a sua mãe, essa liberalidade será reduzida, necessariamente, para garantir que o único filho fique com metade dos bens.

Desta feita, no direito angolano, uma pessoa casada, além das restrições à transmissão de bens decorrentes do regime de bens adoptado, encontrará também limitações decorrentes do regime da sucessão legitimária.

Assim, o Hakimi angolano (marido ou mulher, por força do princípio da igualdade), tendo filhos (como acontece com o Hakimi marroquino/espanhol), não poderia transmitir todos os seus bens para a sua mãe/pai ou terceira pessoa, pois estaria a violar a legítima dos filhos.

A mãe sendo também herdeira legitimária, não tem, no entanto, preferência ou primazia sobre os filhos, pelo que, em caso de morte de Hakimi, a mesma seria obrigada a devolver a parte que a lei impõe seja destinada aos filhos.

5. Conclusões

Com tudo o que foi referido, pode-se concluir o seguinte:

O marido ou a mulher apenas poderão transmitir livre (sem o consentimento do outro) e validamente todos os seus bens à mãe, pai ou terceira pessoa, se entre eles vigorar o regime de separação de bens e nenhum dos bens em questão for usado pelo outro cônjuge como instrumento exclusivo de trabalho, ou por ambos na vida do lar ou como instrumento comum de trabalho.
Tendo vigorado o regime de comunhão de adquiridos, em princípio não será possível a transmissão livre (sem o consentimento do outro) e válida da totalidade dos bens para a mãe, pai ou terceira pessoa, pois para os bens comuns a lei exige, em regra, o consentimento de ambos, salvo se algum deles tiver administração de tais bens.
Em caso de divórcio, e tendo o casamento sido regido pelas regras do regime de comunhão de adquiridos, a cada um dos cônjuges assiste o direito à metade dos bens comuns, que recorde-se, são, em regra, constituídos por todos aqueles adquiridos onerosamente, na constância do casamento; o direito à meação não depende de quem contribuiu ou contribuiu mais para o aumento desse mesmo património comum.
Tendo sido decretado o divórcio, durante a liquidação do património comum, o cônjuge que tiver lesado dito património, com transmissões lícitas ou ilícitas, será obrigado a devolver o que recebeu, se for superior ao que lhe caberia.
Caso não haja acordo para a compensação entre o património comum e o património próprio do cônjuge lesante, o lesado pode impugnar judicialmente todas as transmissões ilícitas, solicitando, por exemplo, que o tribunal declare a nulidade das mesmas e ver os bens regressar ao património comum, não sendo de descartar uma acção de indemnização contra o cônjuge lesante.
E a si, caro leitor, o que lhe parece? Deixe a sua opinião nos comentários abaixo.

Muito obrigado.

Fonte: Jus Expert – Dr. Ireneu Matamba.

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